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Água, guerra, mulheres... e vazio

"As condições de possibilidade de alternativas radicais estão embutidas nas complexas ecologias políticas da luta pela água"

Alex Loftus


No momento que escrevo, a Rússia acaba de declarar guerra à Ucrânia. Minha contribuição não seria substancial se não reconhecesse o estado atual das coisas. Continuamos a experimentar os resquícios de um legado de masculinidade mal direcionada, onde nossos líderes ainda comparam seu poder ao tamanho de seu ego, à força de suas armas e ao impacto dos danos que causam.

Para dizer o mínimo, estou cheia de sentimentos de desapontamento: ainda vivemos sob tal liderança e ainda a toleramos.


Eu queria dedicar esse relato para documentar um aprendizado significativo do primeiro ano da minha jornada no Aura Fellowship. Talvez, no final, ele venha a ser um círculo completo, englobando o estado global de coisas (guerra) e minhas percepções desta irmandade (água e mulheres).


Mural na cidade de Terrassa, na área metropolitana de Barcelona - Espanha, fotografado durante minha pesquisa de campo em Outubro de 2021.

De volta ao verão de 2020


Eu estava vivendo uma mudança crítica em minha vida e me encontrava em total desespero (leia-se burnout) das mudanças que alteram a vida (pense: participar de uma revolução, sobreviver à explosão de Beirute de 4 de agosto, me contagiar com COVID em um contexto pandêmico, casar com uma pessoa que eu amo, deixar para trás o trabalho que me realizava e no qual eu tinha muita competência e trabalhei por mais de uma década e, por fim, começar um doutorado - tudo isso no espaço de poucos meses. Sentei-me em profunda oração por apoio.


Em resposta às minhas orações, recebi um presente... um convite gentil de um querido amigo para candidatar-me a uma primeira coorte da Aura Fellowship, sem saber exatamente o que era e nem o que esperar da experiência. De forma gentil e carinhosa, a Aura rapidamente provou ser o círculo indispensável de mulheres fortes e inspiradoras, o apoio que eu precisava para passar por este período caórdico (quando o caos e a ordem se fundem).


Vamos começar com a guerra...


Sou uma jovem mulher de cor, proveniente de ancestrais libaneses que se esconderam nas cavernas verdes do Monte Líbano durante a perseguição e sobreviveram o tempo suficiente para viver o domínio do Império Otomano que causou a grande fome (1915-1918) (Árabe: مجاعة لبنان) durante a Primeira Guerra Mundial, resultando em centenas de milhares de mortes. Depois veio a colonização francesa na Segunda Guerra Mundial, de 1920 a 1943, que terminou com uma revolta da base ao topo. Esta história de ancestrais dos combatentes e sobreviventes, é também o que caracteriza a identidade dessas vítimas de abuso de poder (e continua até hoje, veja a crise no Líbano), que não é impressa apenas como uma identidade nacional, mas também como minha própria identidade.



Foto tirada nas margens do Mar Mediterrânea, Líbano

O atual estado de coisas é muito relevante e acaba por desencadear traumas passados. Eu também nasci no fim da guerra civil libanesa, no final da década de 80, e vivi suas conseqüências. A história tomou um rumo diferente quando pude imigrar para o Canadá como refugiada aos 14 anos de idade, fugindo da insegurança política e das ameaças - um destino que eu não esperava e tampouco queria. Foi somente então que pude começar a ver o mundo com o que eu chamo de minha "lente híbrida". Pude ver que sou "vista" como uma mulher de cor, mesmo que nunca tivesse me ocorrido que eu fosse racialmente diferente. Pude ver também que agora tenho um privilégio, em virtude de viver fora do Líbano, que preciso usar para "fazer" alguma coisa. Este feito para mim tem sido dedicado às lutas pela água e pelo meio ambiente, juntamente com o empoderamento das mulheres (ambos complementares, em minha opinião).


Foto tirada em Beirute, co-mediando o Climate Transparency Retreat, do Grupo de Transparência sob o Acordo de Paris, 2019.

Vamos falar sobre a água…

Todos os anos, no dia 22 de março, o mundo celebra o Dia Mundial da Água. Passei mais de uma década perguntando a mim mesma e aos outros - para trabalhar como facilitadora e engajadora de stakeholders - o que a água pode nos ensinar a partir de sua sabedoria inerente? O que a água diria se tivesse voz? Como podemos incorporar as características da água em nossa forma de ser?

Então, o que a água pode nos ensinar e o que ela tem a ver com um grupo de mulheres mantidas em círculo?

Profundas percepções se desdobram com facilidade nesse processo tão intenso e transformador que é o Aura Fellowship (não podemos esperar nada menos de um programa onde as guias são chamadas de parteiras). A lição mais dura, significativa e totalmente inesperada foi aquela que veio em apenas duas palavras: "espaço vazio".


O espaço vazio é aquele espaço silencioso dentro de você (e às vezes ao seu redor), a partir do qual observamos as transições que se desdobram - é um limiar.


Foto tirada em um passeio pela natureza, onde através de uma falha na câmera, as flores da planta parecem suspensas entre um passado e um futuro, representando para mim estar em um estado liminar.

Os limiares são simbolicamente vistos como espaços limítrofes, intermediários ou transitórios que se situam em um limite, não pertencentes a um lado nem ao outro e que permitem o fluxo entre um e outro. Estamos deixando algo, mas ainda não habitamos totalmente o que vem a seguir. Conceitos semelhantes foram adotados em práticas espirituais, como o "bardo" budista - o estado de existência intermediário entre duas vidas na terra, ou vida e morte e o navegar através da confusão para depois renascer (Cuevas, 1996).






Um sussurro de uma de nossas parteiras, Eve Annecke, reverbera no meu ouvido: deste espaço liminar, percebo as falhas no sistema. Se mantivermos um olhar de curiosidade acerca dessas falhas, elas podem nos ajudar a entender uma situação a partir de um nível mais profundo de consciência. Tendemos sempre a procurar as respostas fora de nós mesmos e nos esquecemos de olhar para dentro. Deste espaço 'vazio', no fundo de nós, vêm insights que são radicalmente subversivos.


Decidi vincular esta percepção à minha pesquisa sobre a água. Tem sido argumentado que "entidades liminares são sujeitos de trânsito com identidades transitórias; sujeitos abalados que são capazes de pensar e agir de formas não autorizadas, inesperadas e potencialmente inovadoras" (Varvarousis, 2019, p. 501-502). No contexto de minha pesquisa, estou avaliando como a luta pela água (particularmente para privá-la e remunicipalizá-la) pode ser interpretada como um limiar para recompor a água. Isso significa trazer a água de volta aos bens comuns, a um sentido de propriedade ou administração coletiva. Este conceito pode fornecer uma lente interessante para o estudo das subjetividades dos atores no âmbito de como os movimentos da água são moldados pela água e podem, consequentemente, moldar mudanças que se relacionam com a água, com a forma em que ela é governada e administrada. A água sempre nos convidou a trabalhar em conjunto para administrá-la em comum, mesmo quando ela 'aparentemente' nos dividiu - somos nós que deixamos de ouvir.


Foto tirada nas margens do Mar Mediterrâneo, Barcelona

E agora, mulheres...


Ao encontrar meu "espaço vazio", além de ligar este conceito à minha pesquisa, refleti sobre a conexão entre a água, a guerra e as mulheres.


Foto tirada durante um retiro, Ilha Alonissos, Grécia, 2018; um retiro que eu co-anfitriei com mulheres incríveis, para levar-nos mulheres para um espaço liminar, para descobrir nossos sonhos mais profundos, e para recuperar pedaços de nós mesmas.

Cheguei à conclusão (pelo que muitos antes de mim argumentaram e lutaram) que precisamos nutrir mais poder feminino no mundo, e mais importante ainda, uma ecologia política feminista - impulsionando culturas de cuidado com nossos bens comuns. A energia feminina não precisa estar associada apenas às mulheres, uma vez que trata-se de uma força criativa que transcende a orientação sexual. Mas, historicamente, as mulheres têm sido as portadoras e guardiãs de água na maioria das culturas indígenas.




Não é coincidência que exista uma ligação direta entre as mulheres no poder e a gestão ambiental. Um estudo de 2019 constatou que a representação feminina nos parlamentos nacionais em 91 países está correlacionada com políticas mais rígidas de mudança climática e menores emissões de carbono.

Fraser, T; Sinha, R. (2021). Feminist Systems Change. The Systems Sanctuary. https://static1.squarespace.com/static/5a0b2bbb80bd5e8ae706c73c/t/618e886933453b6c82622b74/1636730992795/Feminist+Systems+Change_+Nov+2021.pdf

Como a água, todos nós temos o poder de inundar, destruir, afogar ou matar. Mas também como a água, todos nós temos o poder de fluir, nutrir, saciar, refrescar, inspirar e dar vida.


Podemos explorar esta falha particular da história humana, o momento que estamos vivendo agora, um momento de violência e guerra, e considerá-lo como um espaço liminar para nos perguntarmos: para onde caminhos? Que tipo de liderança queremos alimentar para as gerações futuras? Que estruturas precisam morrer para que nasçam novas? Que alternativas criativas e radicalmente subversivas podemos reimaginar? Talvez respostas mais radicais possam chegar até nós. O mais importante é sair do espaço liminar com algo profundo e transformador.


Photo of a traditional water fountain taken in Beit Eddine, Lebanon

Uma pandemia desacelerou a humanidade, temporariamente, mas falhou em mudar as estruturas sistêmicas orientadas para a guerra e a liderança faminta de poder. Como podemos sair juntos desta crise de liderança para romper os sistemas capitalistas que exploram e permitir culturas de cuidado e administração em seu lugar? Uma ecologia de cuidado com o meio ambiente vem de forma circular para cuidar da humanidade, de nossa água e de nosso futuro neste planeta.


Mulheres, é sua, e nossa, vez. Que alternativas subversivamente radicais você pode imaginar a partir do seu 'espaço vazio'?


 

Dona Geagea é um construtora comunitária, facilitadora e defensora da recomposição da água, trabalhando na interseção dos projetos de água, meio ambiente e transformação social. Retornou à academia para trabalhar em uma Rede Marie Curie de Treinamento em Inovação como pesquisadora do estágio inicial do programa NEWAVE, combinado com um doutorado na Universidade Vrije de Amsterdã. Ela é Bolsista Aura e Bolsista Global da Fundação Rotary.






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